Gostos e sabores do gelo de El Calafate

Bia Pegoraro

A Patagônia era uma meta. Passar frio, idem. Há anos não tiro férias para “pegar” uma cor, tanto que, quando volto das viagens, me sinto azul como o gelo do Perito Moreno. Não visitei Ushuaia. Saí de Buenos Aires e fui direto para El Calafate. Lá estava tudo o que eu queria: gelo, comida e cerveja artesanal. Só não fazia ideia de que o vento patagônico faria com que meu voo fosse uma cena de Apertem os Cintos: o piloto sumiu.

Aparentemente, isso só aconteceu comigo. Todas as pessoas pareciam felizes no aeroporto, prontas para comer um cordeiro patagônico inteiro. Eu, ainda em surto por conta do voo dramático, mais assustador que enfrentar a linha vermelha sentido Corinthians-Itaquera, em São Paulo, ainda precisava de um drink para esquecer o pânico.

Não demorei a entrar no primeiro bar. A Fernet Branca (que é preta) é obrigatória. Lá, os argentinos bebem com Coca-Cola e... gelo! De cara, pensei que seria uma má ideia. Passados dois dias, já estava procurando a bebida para comprar no mercado. Sou dessas. A paixão ocorreu instantaneamente. Calafate é acolhedor, simples, com pessoas educadas e felizes.

Digo simples pois me lembrou muito uma Campos do Jordão, obviamente que bem menor. Mas, muito simples. Sem carros luxuosos e pessoas vestidas e perfumadas para um evento de tapete vermelho. Em Calafate, use apenas uma bota de trekking, casaco da Decathlon para neve, e uma touca muito, muito quente.

Os locais, embora amem o frio e o gelo, comemoravam a chegada da primavera para dali a três dias. As cores da estação encantam a todos, até mesmo no fim do mundo. E lá, descobri que é possível comer maravilhosamente bem. Dentre todos os lugares programados para a visita, reservei um período para um roteiro arqueológico, realizado pela Nativo Experience. Esse rolê geladaço pode ser feito de manhã – com almoço, ou no fim da tarde, para quem quer jantar.

007-SABO-foto-1-el-calafate-ensopado

A grande sacada desse passeio é uma só: depois de muitas explicações sobre os homens primatas e visitações a sítios arqueológicos em frente ao Lago Argentino, você é magicamente direcionado para uma caverna, onde estará à sua espera um caldeirão com o melhor ensopado da vida, essencial para que sua boca volte a abrir depois de ter sido congelada pela ventania.

007-SABO-foto-2-pao

Cordeiro com legumes, servido dentro de um pão. Simples assim. O esquema nada gourmetizado ainda incluía fogueira, caldeirão de ferro da bruxa e uma fome que só estando lá para saber. É incontestável a alegria do ser humano ao se deparar com um prato de comida quente a -6°. Esse ser humano sou eu mesma, que comi e repeti o prato, certa de que jamais compraria um cordeiro no mercado aqui no Brasil para fazer uma sopa, caso quisesse, por uma insanidade mental, tentar repetir a receita dos hermanos do gelo.

007-SABO-foto-3-caverna

Uma experiência única, com uma paisagem inesquecível. Acredito que o mesmo tour à noite não seja tão proveitoso, pois o azul do Lago Argentino se funde com o céu primaveril do fim do mundo, que de fim mesmo, não tem nada.

As experiências gastronômicas em Calafate me surpreenderam tanto quanto caminhar sob a geleira de Perito Moreno deu aquela sensação de estar dentro de um merengue, em cima de um suspiro gigante. Uma formiga no doce. Assim é o que somos: pequenos, diante da natureza exuberante da Patagônia.

007-SABO-foto-4-patagonia